quarta-feira, 12 de setembro de 2007

“Endeusamento do artista é péssimo”


Uma das maiores personalidades da cultura brasileira no mundo, o pianista Arthur Moreira Lima aportou em Rio Verde para uma apresentação a céu aberto no Calçadão no dia 23 de junho de 2007. O carioca de 67 anos já fez turnês em todos os continentes, lotando as principais salas de concertos do mundo e, desde 2003, refaz os passos de Juscelino Kubistchek pelos rincões do Brasil. De lá para cá, já percorreu quase 200 municípios com o projeto Um Piano pela Estrada, Nos Caminhos de JK. A entrevista foi gravada no Bar 5ª Essência, onde, entre um chopp e outro, ele defendeu o papel transformador do artista na sociedade e revelou a influência do pensamento de Leonel Brizola e Darci Ribeiro. Para ele, o endeusamento de artistas representa sublimação da inveja dos fãs.


Entre as orquestras que o senhor já se apresentou estão a Orquestra Sinfônica Brasileira, as Sinfônicas de Berlim e Viana e as Filarmônicas de Varsóvia, entre outras. Nessa fase atual o sr. tem tocado em cidades pequenas do interior, passando por apresentações até mesmo em tribos indígenas e populações ribeirinhas. Qual é o aprendizado que o artista tira do público através dessa experiência?
Eu aprendi que, no geral, o público que parece mais sofisticado não é o mais sofisticado ou sequer possui uma sensibilidade maior para a arte. Muitas vezes, ele só tem mais poder econômico e mais oportunidades de acesso para esse tipo de manifestação artística. Tenho encontrado muitos diamantes não lapidados em vários lugares, muito talento mesmo. Por que não é só o talento para tocar determinado instrumento, é o talento para receber e apreciar a obra de arte. Quando eu era pequeno existia uma empregada na casa da minha mãe que só escutava música clássica no rádio. Não era por causa de religião nem porque alguém falou, ela realmente gostava daquilo. O fato de ser pobre e uma ignorante aos olhos da maioria não impediu que ela desenvolvesse a sensibilidade de apreciar música erudita. Na verdade, não deveria existir nenhuma contradição nisso.


Desde 2003, o sr. já se apresentou em mais de 200 municípios brasileiros. Isso após ter conquistado prestígio nacional e internacional. O que o projeto Um Piano pela Estrada representa na sua carreira?
Eu não acho que eu tenha bem o que se chama de carreira, mas algo como uma profissão de fé mesmo. Eu me vejo mais ou menos como um padre de uma cidade pequenininha do interior, que pensa no seu rebanho e em ir, pouco a pouco, apascentando as ovelhas. Um padre que não quer ser papa, nem cardeal, nem nada, mas apenas se dirigir aos irmãos dele. Tem médico que vai para o interior e, enfim, se contenta em ganhar uma galinha ou um porco e salvar vidas. Vale muitas vezes mais do que um medalhão que fica lá cobrando uma fortuna para te atender. Transferindo isso para a música, eu atingi um patamar de sucesso na minha profissão em que eu posso me permitir fazer essa busca que para mim é uma referência do ser humano, do brasileiro. Muito mais do que esse endeusamento que muitos artistas promovem ao redor de si e todas essas bobagens. Eu trabalho pela dessacralização da música que eu toco para um povo tão profundamente agradecido que é o brasileiro. Então, antes de ser pianista, artista, qualquer coisa, eu sou um brasileiro. Eu gosto de ser brasileiro. Eu não sei por que, mas eu gosto pra valer. Eu acho que todos que nascem aqui nascem com o dom dessa abstração político e geográfica fabulosa que eu chamaria de alma brasileira. A gente é condenado a muita chateação também, mas tem esse lado que é simplesmente mágico.


O artista, então, deve exercer uma função social?
Eu tenho certeza que sim. Eu acho que o Brasil precisa se afirmar. Eu acredito estar dando a minha pequena contribuição para a gente se tornar uma nação. Nós temos tudo para isso. Eu tive a sorte e a honra de trabalhar com Leonel Brizola e Darcy Ribeiro no governo do Rio de Janeiro, como secretário de Cultura. O Darcy, que foi uma das pessoas mais iluminadas que eu já conheci, uma alma bonita e um dos brasileiros mais brilhantes e interessados com os problemas da sociedade... a sensibilidade do Brizola, aprendi muito com eles. Eu acho interessante que hoje, depois que o Brizola morreu, todo mundo reconheça o que ele fez. Até os que não gostavam dele. Isso é mesmo impressionante. Eu tive o privilégio de levar atenção e cultura para pessoas carentes do Estado ao lado desses dois homens, tenho certeza de que foi um trabalho que ajudou a quebrar a idéia de relação das pessoas com a arte, uma coisa autêntica que só seria possível no Brasil.


Antes de executar cada música, o sr. fala ao público sobre o momento histórico e político em que ela foi feita, sobre a vida do autor, enfim, contextualiza a platéia acerca daquela obra. Isto enriquece muito a maneira de entender a música...
Claro... é isso que dá toda a diferença. Você que é jornalista sabe que é importante passar um pouquinho de informação em tudo. Até no futebol a gente quer saber com quem o jogador namora, não é mesmo? Eu adoro futebol. Eu tenho mania de querer saber quantos anos tem o jogador, de qual clube ele veio, esse negócio todo. Olhe bem, o futebol é uma coisa importada e que faz parte da nossa cultura. A música clássica não faz, mas pode vir a fazer. Você tem que mostrar para as pessoas que você é igual a elas, que você não está em pedestal nenhum e que sabe que não é merda nenhuma. Eu sou uma pessoa que teve a oportunidade de estudar e de desenvolver um talento. Muitos outros não tiveram a mesma sorte, mas, como eu disse, o Brasil está repleto de diamantes que precisam ser lapidados. A gente precisa tratar as pessoas de igual para igual. Eu acho que o endeusamento do artista é uma coisa péssima. Eu sei que o povo necessita de heróis, mas ele não precisa da ligação que desperte em seu íntimo a inveja. Eu considero o fã a sublimação da inveja humana.


Ser um artista de música erudita faz o sr. se sentir de alguma forma oprimido diante da força da indústria cultural?
Não, sinceramente. Eu acho que sempre vão existir os nichos e que você tem que tentar convencer as pessoas. Isso em qualquer área da sua vida. Quando o Darcy e o Brizola resolveram montar toda aquela apoteose para as escolas de samba no Rio de Janeiro, eles desagradaram aqueles que queriam ganhar dinheiro com as arquibancadas. Nesse ponto eu aprendi muito quando trabalhei no governo. As pessoas que chegam contrariando uma série de interesses causam reações. Basta ver a situação do Hugo Chávez na Venezuela. Existem várias formas de você conduzir uma pessoa a responder o que você quer em uma pesquisa. “Você concorda com o fechamento das televisões?” pode ser uma maneira de fazer isso. Eu não acredito em um monte de estatísticas que eu vejo na televisão. O povo da Venezuela não está contra o seu presidente coisa nenhuma. Eu vivi quase dez anos na União Soviética e sei disso, sobre as perseguições e tudo mais. Eu me considero um operário da cultura.

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